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A noite antes do amanhecer: o Brasil ainda não acordou para o racismo que o sustenta

  • Foto do escritor: Alma Mater Cosméticos
    Alma Mater Cosméticos
  • 19 de nov.
  • 5 min de leitura
mãe e filho olham para o futuro na véspera do dia da consciência negra

Hoje é 19 de novembro. Há algo de profundo e silencioso nessa véspera do Dia da Consciência Negra, como se o país inteiro respirasse fundo diante de uma data que, para muitos, é apenas feriado, mas para nós… é memória, é aviso, é ferida e é força.


Eu sempre achei curioso como o Brasil se comporta nesta época do ano. Durante um único dia, todo mundo decide olhar para nós. As marcas lembram que existimos. As escolas fazem atividades temáticas. Os jornais repetem as mesmas estatísticas. As redes sociais se enchem de frases prontas e imagens bonitas.


Mas, quando a poeira baixa, fico me perguntando: quantos, de fato, despertaram? E quantos apenas piscaram os olhos para voltar a dormir?


Porque a verdade, essa que ninguém gosta de dizer em voz alta, é que a Consciência Negra não é o amanhecer. Ela é o pedido. O chamado. O lembrete de que o amanhecer ainda não chegou.


E talvez nem esteja perto.


O silêncio da véspera

No meu peito, a noite antes do dia 20 sempre traz uma mistura de sentimentos: orgulho, memória, gratidão, revolta e cansaço. É como estar em uma vigília. A vigília de quem sabe que o mundo vai falar de nós amanhã, mas talvez continue nos ferindo no dia seguinte.


Eu era muito nova quando percebi que não precisava que ninguém me explicasse o que era racismo. Meu corpo se encarregou de me ensinar. A forma como me olhavam no supermercado. A professora que hesitou antes de me elogiar. O segurança que sempre parecia me acompanhar com os olhos. As piadas que não eram piadas. As perguntas que não eram perguntas. As ausências que diziam muito mais do que qualquer ofensa.


Eu entendi cedo que, no Brasil, o racismo não é o monstro que aparece de repente. Ele é o vento que nunca para de soprar.


Ele está sempre lá, na sala, na escola, no mercado, na novela, nas eleições, mas tão bem camuflado que muitos fingem não notar.


Porque, aqui, o racismo não grita. Ele cochicha. E é justamente por isso que adoece tanto.


Racismo Estrutural: O sistema funciona porque foi feito para funcionar assim

Às vezes dizem que o racismo no Brasil é “estrutural”. Mas pouca gente realmente entende o peso dessa palavra.


Estrutural significa que não há problema de funcionamento. O sistema está funcionando exatamente como foi projetado.


Significa que não é a exceção: é a regra.


Que não é o tropeço: é o caminho.


Que não é o ruído: é a trilha sonora.


O racismo brasileiro é tão eficiente que consegue ser negado até quando mata. Até quando exclui. Até quando determina quem chega e quem não chega.


E eu penso: como pode o país que mais celebra a diversidade ser, ao mesmo tempo, o que mais nos esmaga?


A resposta ninguém gosta de ouvir: porque o Brasil ama a cultura negra, mas não ama as pessoas negras. Ama nossa música, mas não nossa humanidade. Ama nosso ritmo, mas não nossa dor. Ama nossa força, mas não nossa liberdade.


A infância negra: a ferida que se abre antes mesmo de haver palavras

Se existe algo que me atravessa como mulher negra, mãe e avó, é saber que nossas crianças frequentemente descobrem o racismo antes de saberem nomeá-lo.


Não é só quando ouvem uma piada. Ou quando são preteridas na escola. Ou quando ninguém escolhe elas para o papel principal na peça.


É antes disso. Muito antes.


É quando percebem que seu cabelo é tocado sem permissão, como se fosse objeto. Quando descobrem que seu nariz e sua boca são comparados como se fossem exageros. Quando veem que quase não aparecem nos desenhos, nos livros, nos brinquedos. Quando a professora chama elas de “fortes” onde chamaria outra criança de “sensível”. Quando os adultos reagem aos seus choros como se fossem desafios e não pedidos de acolhimento.


A infância negra no Brasil tem o dom de ver o mundo com olhos atentos, não por opção, mas por sobrevivência.


E é por isso que, às vezes, eu fecho os olhos e penso: como seria um país onde uma criança negra pudesse simplesmente ser criança?


Resistência é herança mas também é cansaço

Gosto quando dizem que o povo negro é resiliente. Mas também me dói.


Porque eu sei, como todas nós sabemos, que resiliência nunca foi escolha. Foi o que fizeram de nós quando tiraram nossas alternativas.


Nossa força é bonita, mas é consequência. Nossa resistência é admirável, mas é cicatriz.


E é justamente por isso que a luta antirracista é tão urgente. Para que nossas crianças não cresçam acreditando que nasceram para resistir. Para que elas aprendam, finalmente, a viver.


O que queremos dizer ao Brasil na véspera do 20 de novembro

Hoje, nesta noite que antecede o Dia da Consciência Negra, eu queria pedir ao Brasil uma honestidade que ele sempre adiou:

O racismo não é um problema da população negra. O racismo é um problema da população branca que se recusa a enxergar o que produz.

A nós, negros, o país cobra silêncio. Paciência. Elegância. Gratidão. Humildade. Compreensão. E, quando possível, perdão.


Mas o que o Brasil mais precisa é responsabilização. É decisão. É coragem para desmontar os privilégios que mantém de pé.


E isso não cabe a nós. Sempre coube e continua cabendo, a quem se beneficia da estrutura.


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Como seguimos? Com o que herdamos

A boa notícia é que nós, negros, sempre tivemos o que precisamos para continuar: nossos saberes, nossa cultura, nossa ancestralidade, nossa fé, nossa música, nossa comida, nossos corpos, nossa memória.


Somos continuidade. Somos rio que não seca. Somos raiz que insiste. Somos o que há de mais vivo neste país.


E é por isso que, apesar de tudo, eu ainda acredito no amanhecer.


Não porque o Brasil mudou. Mas porque nós mudamos. Nós estamos mais conscientes. Mais assertivos. Mais presentes. Mais inteiros.


E nossas crianças, ah, nossas crianças, serão a geração que não aceitará as migalhas que tantas vezes aceitamos para sobreviver.


Elas vão exigir abundância. E pertencimento. E respeito. E futuro.


Quando o amanhecer chegar

Amanhã, 20 de novembro, muitas vozes vão se levantar. Algumas sinceras. Outras de ocasião. Mas nós estaremos aqui, como sempre estivemos.


E eu desejo, do fundo da minha alma, que essa data um dia deixe de ser necessária. Que o Brasil finalmente acorde. Que nossos filhos e netos caminhem por este país sem sentir que precisam pedir permissão para existir.


Porque consciência negra não é sobre lembrar do passado. É sobre construir o futuro.


E o futuro que queremos não começa amanhã. Ele começa hoje. na noite antes do amanhecer.


Simone Aguiar, mãe, avó e farmacêutica, mulher negra


por Simone Aguiar

Diretora Executiva na Alma Mater Cosméticos




Simone é mãeavófarmacêutica graduada pela UFRGS. Atua no mercado de cosméticos há 40 anos, tendo desenvolvido mais de 100 formulações comerciais ao longo de sua carreira como consultora e colaboradora em grandes empresas como Biolab Farmacêutica, Body Store, The Body Shop/Natura.

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